sábado, 20 de setembro de 2014

Vermelho


Li na notícia que o corpo desapareceu – não era gente, era só corpo.

O dia começa. Lavo o rosto e ponho a me pintar com as cores que toda mulher foi ensinada a conhecer para se fazer bonita. O bege para esconder manchas, marcas, o roxo sobre os olhos de quem não dormiu entre gemidos e orgasmos ou de quem chorou a noite inteira em silêncio – o quanto ela sofreu para tomar a decisão que a levou à morte? O lápis preto dando contorno aos olhos – as notícias mais recentes disseram que o corpo dela foi carbonizado e a arcada dentária retirada para que não a reconhecessem. Alonguei os cílios com a máscara também preta – meu deus, um corpo queimado até virar carvão. Os lábios hoje serão vermelhos – acho que na morte ela sangrou o que ela não sangrou quando descobriu que estava grávida. E sempre ecoa: “esse vermelho podia ser em mim”.

Hora do almoço. Esquento minha marmita no microondas e queimo meus dedos no vidro quente do prato – o corpo queimado, pois morreu em uma clínica ilegal de aborto porque é proibido; se estivesse viva seria criminosa perante a lei. O jornal me dá dados: “140 estupros são registrados por dia no Brasil” – no mínimo há mais ainda o dobro que não é registrado. Mancho os talheres com meu batom vermelho – cada estupro mancha de sangue uma mulher; força cruel machuca a carne e muito mais a fundo. E sempre ecoa: “esse vermelho podia ser em mim”.

É noite. Troco o uniforme pelo vestido vermelho, as pernas a mostra. Me lembro da minha vó dizendo: “na minha época a gente mostrava o joelho e os homens já enlouqueciam” – na época da minha vó as mulheres não aprendiam a escrever nem ler, na época da minha vó as mulheres não podiam usar batom vermelho. No meio da rua encontro um jornal já antigo com a chamada: “65% da população concorda que o abuso é em parte culpa da mulher” – se hoje eu sofrer abuso dentro do trem, se me estuprarem na rua sem iluminação, se eu sangrar, a culpa será minha, será do meu vestido vermelho. E sempre ecoa: “esse vermelho podia ser em mim... espera, esse vermelho é em mim”.

Na volta pra casa passo em frente ao puteiro de neon vermelho – acho que Virginia trabalha aqui; o nome dela quase soa como ironia da vida. Virginia queria usar no rosto as mesmas cores que eu, mas a maquiagem é forte pra chamar atenção. A saia muito mais curta que a minha também vermelha. Quando era criança foi abusada pelo padrasto, a mãe a colocou pra fora de casa quando descobriu. As cicatrizes se acumulam. Os clientes que a machucam com força, os abortos que teve que cometer. O ponto de ônibus é em frente ao puteiro e confundem o meu vestido com a saia de Virginia; na noite na rua de roupa curta eu também sou puta. E sempre ecoa: “esse vermelho também é em mim”.

Outro dia. Saindo de casa encontro a carteira, ela me sorri um sorriso amarelo; um dos dentes caiu semana passada, os lábios ainda estão inchados – “é o marido que bate nela” diz a minha vizinha, diz como se não fosse nada. A bochecha esquerda mais vermelha que a direita, o bege da maquiagem tenta esconder o vermelho de sangue pisado em volta do olho castanho. Eu nem sei o nome dela – por que ela não faz nada? Por que não sai de casa? E sempre ecoa: “esse vermelho também é em mim”.

No trabalho todos choram. A filha da menina da limpeza foi assassinada pelo ex-marido. Tinha acabado de se separar – cansou de apanhar. Lembro que eu tinha ficado feliz por ela ter conseguido se libertar das agressões diárias – tudo isso pra morrer agora. Morta com um tiro. Manchou de vermelho as paredes brancas da casa de apenas um cômodo onde morava com a mãe e o filho ainda novo. E sempre ecoa: “esse vermelho também é em mim”.

E o vermelho não para de vir a mim. Dia após dia. O silêncio dói tanto que se um dia eu gritar cuspirei sangue junto. Esse vermelho também é em mim.




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