Li
na notícia que o corpo desapareceu – não era gente, era só corpo.
O
dia começa. Lavo o rosto e ponho a me pintar com as cores que toda mulher foi
ensinada a conhecer para se fazer bonita. O bege para esconder manchas, marcas,
o roxo sobre os olhos de quem não dormiu entre gemidos e orgasmos ou de quem
chorou a noite inteira em silêncio – o quanto ela sofreu para tomar a decisão
que a levou à morte? O lápis preto dando contorno aos olhos – as notícias mais
recentes disseram que o corpo dela foi carbonizado e a arcada dentária retirada
para que não a reconhecessem. Alonguei os cílios com a máscara também preta –
meu deus, um corpo queimado até virar carvão. Os lábios hoje serão vermelhos –
acho que na morte ela sangrou o que ela não sangrou quando descobriu que estava
grávida. E sempre ecoa: “esse vermelho podia ser em mim”.
Hora
do almoço. Esquento minha marmita no microondas e queimo meus dedos no vidro
quente do prato – o corpo queimado, pois morreu em uma clínica ilegal de aborto
porque é proibido; se estivesse viva seria criminosa perante a lei. O jornal me
dá dados: “140 estupros são registrados por dia no Brasil” – no mínimo há mais
ainda o dobro que não é registrado. Mancho os talheres com meu batom vermelho –
cada estupro mancha de sangue uma mulher; força cruel machuca a carne e muito
mais a fundo. E sempre ecoa: “esse vermelho podia ser em mim”.
É
noite. Troco o uniforme pelo vestido vermelho, as pernas a mostra. Me lembro da
minha vó dizendo: “na minha época a gente mostrava o joelho e os homens já
enlouqueciam” – na época da minha vó as mulheres não aprendiam a escrever nem
ler, na época da minha vó as mulheres não podiam usar batom vermelho. No meio
da rua encontro um jornal já antigo com a chamada: “65% da população concorda
que o abuso é em parte culpa da mulher” – se hoje eu sofrer abuso dentro do
trem, se me estuprarem na rua sem iluminação, se eu sangrar, a culpa será
minha, será do meu vestido vermelho. E sempre ecoa: “esse vermelho podia ser em
mim... espera, esse vermelho é em mim”.
Na
volta pra casa passo em frente ao puteiro de neon vermelho – acho que Virginia
trabalha aqui; o nome dela quase soa como ironia da vida. Virginia queria usar
no rosto as mesmas cores que eu, mas a maquiagem é forte pra chamar atenção. A
saia muito mais curta que a minha também vermelha. Quando era criança foi
abusada pelo padrasto, a mãe a colocou pra fora de casa quando descobriu. As
cicatrizes se acumulam. Os clientes que a machucam com força, os abortos que
teve que cometer. O ponto de ônibus é em frente ao puteiro e confundem o meu vestido
com a saia de Virginia; na noite na rua de roupa curta eu também sou puta. E
sempre ecoa: “esse vermelho também é em mim”.
Outro
dia. Saindo de casa encontro a carteira, ela me sorri um sorriso amarelo; um
dos dentes caiu semana passada, os lábios ainda estão inchados – “é o marido
que bate nela” diz a minha vizinha, diz como se não fosse nada. A bochecha
esquerda mais vermelha que a direita, o bege da maquiagem tenta esconder o
vermelho de sangue pisado em volta do olho castanho. Eu nem sei o nome dela –
por que ela não faz nada? Por que não sai de casa? E sempre ecoa: “esse
vermelho também é em mim”.
No
trabalho todos choram. A filha da menina da limpeza foi assassinada pelo
ex-marido. Tinha acabado de se separar – cansou de apanhar. Lembro que eu tinha
ficado feliz por ela ter conseguido se libertar das agressões diárias – tudo
isso pra morrer agora. Morta com um tiro. Manchou de vermelho as paredes brancas
da casa de apenas um cômodo onde morava com a mãe e o filho ainda novo. E
sempre ecoa: “esse vermelho também é em mim”.
E
o vermelho não para de vir a mim. Dia após dia. O silêncio dói tanto que se um
dia eu gritar cuspirei sangue junto. Esse vermelho também é em mim.
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