sábado, 27 de setembro de 2014

Tempestade


Minha respiração arfava, a dela era calma apesar de funda. Ela me olhava com os olhos negros e duros. Parecia haver maldade naquele olhar, como se os gemidos que acabar de emitir tivessem evocado algum demônio que estava adormecido dentro do seu corpo magro. E agora era o demônio que me observava através dos olhos dela. Ela não ficava mole como as outras mulheres que tive na cama; ela não buscava meu peito para deitar a cabeça; ela mantinha o meu corpo ali sobre o dela, fundindo nosso suro e me olhando nos olhos com aquele olhar que me dava medo e me atraía. Eu ficava naquele instante como uma mariposa enfeitiçada pela luz da vela. Era sempre eu que quebrava o silêncio com alguma falsa declaração. Só então, ela me beijava e me sussurrava “obrigada” ao pé do ouvido. A dureza do seu olhar se derretia e ela era de novo a parte doce de si mesma; a parte que eu temia que se apaixonasse por mim e que eu pudesse ferir. No fim eu sempre sabia que todas as partes dela me causavam temos por diferentes motivos. Era como se eu fosse dia cinza até ela chegar e agora me causava todo tipo de perturbação, fazia as nuvens se precipitarem em chuva. Ela era a própria tempestade.

sábado, 20 de setembro de 2014

Vermelho


Li na notícia que o corpo desapareceu – não era gente, era só corpo.

O dia começa. Lavo o rosto e ponho a me pintar com as cores que toda mulher foi ensinada a conhecer para se fazer bonita. O bege para esconder manchas, marcas, o roxo sobre os olhos de quem não dormiu entre gemidos e orgasmos ou de quem chorou a noite inteira em silêncio – o quanto ela sofreu para tomar a decisão que a levou à morte? O lápis preto dando contorno aos olhos – as notícias mais recentes disseram que o corpo dela foi carbonizado e a arcada dentária retirada para que não a reconhecessem. Alonguei os cílios com a máscara também preta – meu deus, um corpo queimado até virar carvão. Os lábios hoje serão vermelhos – acho que na morte ela sangrou o que ela não sangrou quando descobriu que estava grávida. E sempre ecoa: “esse vermelho podia ser em mim”.

Hora do almoço. Esquento minha marmita no microondas e queimo meus dedos no vidro quente do prato – o corpo queimado, pois morreu em uma clínica ilegal de aborto porque é proibido; se estivesse viva seria criminosa perante a lei. O jornal me dá dados: “140 estupros são registrados por dia no Brasil” – no mínimo há mais ainda o dobro que não é registrado. Mancho os talheres com meu batom vermelho – cada estupro mancha de sangue uma mulher; força cruel machuca a carne e muito mais a fundo. E sempre ecoa: “esse vermelho podia ser em mim”.

É noite. Troco o uniforme pelo vestido vermelho, as pernas a mostra. Me lembro da minha vó dizendo: “na minha época a gente mostrava o joelho e os homens já enlouqueciam” – na época da minha vó as mulheres não aprendiam a escrever nem ler, na época da minha vó as mulheres não podiam usar batom vermelho. No meio da rua encontro um jornal já antigo com a chamada: “65% da população concorda que o abuso é em parte culpa da mulher” – se hoje eu sofrer abuso dentro do trem, se me estuprarem na rua sem iluminação, se eu sangrar, a culpa será minha, será do meu vestido vermelho. E sempre ecoa: “esse vermelho podia ser em mim... espera, esse vermelho é em mim”.

Na volta pra casa passo em frente ao puteiro de neon vermelho – acho que Virginia trabalha aqui; o nome dela quase soa como ironia da vida. Virginia queria usar no rosto as mesmas cores que eu, mas a maquiagem é forte pra chamar atenção. A saia muito mais curta que a minha também vermelha. Quando era criança foi abusada pelo padrasto, a mãe a colocou pra fora de casa quando descobriu. As cicatrizes se acumulam. Os clientes que a machucam com força, os abortos que teve que cometer. O ponto de ônibus é em frente ao puteiro e confundem o meu vestido com a saia de Virginia; na noite na rua de roupa curta eu também sou puta. E sempre ecoa: “esse vermelho também é em mim”.

Outro dia. Saindo de casa encontro a carteira, ela me sorri um sorriso amarelo; um dos dentes caiu semana passada, os lábios ainda estão inchados – “é o marido que bate nela” diz a minha vizinha, diz como se não fosse nada. A bochecha esquerda mais vermelha que a direita, o bege da maquiagem tenta esconder o vermelho de sangue pisado em volta do olho castanho. Eu nem sei o nome dela – por que ela não faz nada? Por que não sai de casa? E sempre ecoa: “esse vermelho também é em mim”.

No trabalho todos choram. A filha da menina da limpeza foi assassinada pelo ex-marido. Tinha acabado de se separar – cansou de apanhar. Lembro que eu tinha ficado feliz por ela ter conseguido se libertar das agressões diárias – tudo isso pra morrer agora. Morta com um tiro. Manchou de vermelho as paredes brancas da casa de apenas um cômodo onde morava com a mãe e o filho ainda novo. E sempre ecoa: “esse vermelho também é em mim”.

E o vermelho não para de vir a mim. Dia após dia. O silêncio dói tanto que se um dia eu gritar cuspirei sangue junto. Esse vermelho também é em mim.




domingo, 14 de setembro de 2014

Testemunhas de tudo


Descemos pela estrada que tem mais curvas. A visão de lá é mais bonita. As curvas respeitam as montanhas que estavam lá muito antes. O vento entra pelas janelas abertas e bate em nosso rosto e embaraça nosso cabelo sem que ninguém reclame. Faz 32ºC. É verão. No rádio as musicas tocam para serem a trilha sonora de nossas fantasias, de nossas férias desse mundo. Quando "All of my love" começa ele aumenta o som e o tempo para. Todos os pensamentos fazem silêncio dentro de nossas cabeças para em seguida ouvirem "Stairway to heaven" e ficarem presos eternamente no solo de guitarra de Jimmy Page.

De madrugada ele me disse que sempre que me via pela faculdade tinha a impressão de que eu era perdida; quando me conheceu teve certeza de que eu era exatamente isso. Acho que me ofendi e por isso pedi para ele me explicar:

- Perdida em pensamentos, que você pensava muito, perdida dentro da própria cabeça. Sabe?

E agora eu estava perdida ali, no meio de um solo de guitarra. Olhando pela janela as montanhas que viram vidas após vidas, que viram outras tantas meninas perdidas em si mesmas. Montanhas que foram testemunhas de tudo.



Picinguaga, foto de Gabriela Farrabrás